Existe Machismo na Capoeira?

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Sempre que um novo caso de violência contra a mulher aparece no seio da Capoeira, inicia-se uma discussão entre os que defendem que as agressões devem ser denunciadas publicamente e os que dizem que deve-se preservar a imagem da Capoeira, evitando a exposição do caso. Há também aqueles que afirmam que o debate sobre o machismo nada tem a ver com a Capoeira e o que acontece é exagero por parte das mulheres.

E afinal, essa conversa é relevante ou mi-mi-mi?

Questões sobre o machismo são geralmente levantadas por mulheres, muitas vezes em eventos femininos sem a presença masculina, o que leva muito homens a acreditarem que isso seja pura picuinha ou “mi-mi-mi”. No entanto, os homens também sofrem com o machismo de forma brutal, tendo que adequar-se a um determinado padrão de comportamento definido como “masculino”, associado a conceitos como “força” e “objetividade”, tendo que “ser guerreiro” ou “campeão”.

O “guerreiro-campeão” não fraqueja, não chora, não tem sentimentos “femininos”.

Dentro de qualquer sociedade existem costumes relacionados aos papeis designados a homens e mulheres. Alguns desses costumes se baseiam em conceitos biológicos, uma vez que mulheres e homens têm características diferentes, mas outros são completamente aleatórios, como cores ou comprimento de roupas.

“Meninas vestem rosa, meninos vestem azul”

Estes sistemas de ideias atuam nos níveis ideológico, institucional, interpessoal e individual, formando as bases das certezas que carregamos vida afora.

Um destes sistemas é o machismo.

Para entender como isso nos afeta, precisamos primeiramente conceituar o que é esse “tal de machismo” e também o que é o “tal do feminismo”.

Machismo é um sistema de opressão e restrição de direitos.

O machismo é uma ideologia, um conjunto de ideias, que nega a igualdade de direitos entre homens e mulheres e coloca os primeiros em posição de supremacia. É como se fosse um grande guarda-chuva de valores, costumes e comportamentos coletivamente aceitos. Desta forma, não pensamos sobre eles, pois se tornam a norma, o “normal”.

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Propaganda direcionada para “melhorar” a vida das mulheres

Agora que já falamos um pouco sobre o machismo, vamos ver o que é o feminismo.

Feminismo é uma luta por igualdade de direitos.

Se machismo é um sistema de opressão e feminismo é uma luta por igualdade de direitos, logo machismo não é o equivalente de feminismo.

As batalhas feministas ao longo dos séculos foram responsáveis por muitas conquistas sociais e ainda hoje as mulheres seguem em luta para que se diminua a disparidade dos direitos.

Panteras Negras

Apesar dos muitos avanços conquistados pelos movimentos feministas -direito ao estudo, ao voto ou à autonomia- seguimos vendo um profundo preconceito à palavra “feminismo”, como se esta fosse o equivalente ao machismo.

O feminismo é uma luta libertadora, que liberta inclusive aos homens de terem que seguir repetindo condutas que os escravizam no papel de “machão”, sendo obrigados a esconderem seus sentimentos e sensibilidades por medo de serem tachados de “afeminados”.

E na Capoeira, existe machismo?

Obviamente, a Capoeira não estaria imune aos reflexos de um sistema tão complexo, do qual ela é apenas um micro-pedaço.

Há muitas mestras e líderes feministas que vêm, há muito tempo, tentando lançar luz nesta questão. Há blogs, páginas em redes sociais e muitos artigos dedicados ao tema. Basta uma rápida busca no google para encontrar muito material a respeito.

Como uma das dezenas de experiências pessoais que já vi, posso ressaltar uma roda de rua em um evento feminista que participei em 2018. A mestra do evento estava no comando, com seu berimbau berra-boi. Eu e outro mestre estávamos ao seu lado. Um capoeirista local se aproximou de nós e imediatamente perguntou ao mestre que estava ao meu lado se poderia participar. Este mestre, surpreendido, olhou para mim. O rapaz veio então em minha direção, perguntando a mesma coisa e eu lhe respondi para que falasse com a mestra do evento, que estava com o berimbau berra-boi, posição tradicional de liderança. O rapaz me olhou meio desacreditado… Olhou para a mestra… E foi sentar na roda, sem falar com ela. Nós, no berimbau, nos entreolhamos e nem precisamos falar nada para vermos como foi bizarra e ao mesmo tempo “normal” a situação.

Por ser tão raro ver referências femininas em posições de liderança, acabamos não acreditando que elas existam.

A imagem abaixo reflete a dificuldade em encontrar estas referências.

Busca no Google para as palavras “MestrAs de Capoeira”.

Como combater o machismo?

Algumas perguntas básicas podem ser feitas para se compreender o que seria um “capoeirista que enxerga o machismo”:

– Você concorda que mulheres e homens devem receber o mesmo cachê pela participação em um evento de Capoeira?

– Você concorda que uma mestra de CAPOEIRA deve ser convidada a um evento para dar aula de Capoeira e não somente de samba?

– Você concorda que se um homem leva uma rasteira de uma mulher ele deve encarar com a mesma naturalidade que teria se tivesse levado uma queda de outro homem?

– Você concorda que se há homens jogando de sunga na praia as mulheres também podem jogar de bikini, sem serem moralmente julgadas por isso?

– Você enxerga que muitas vezes as mulheres são abusadas e oprimidas nos ambientes de Capoeira?

– Você reconhece que existe um sistema social injusto que privilegia os homens na Capoeira e fora dela?

– Você consegue enxergar que a opressão faz mal para todos, inclusive para quem oprime?

E por que a Capoeira deveria se preocupar com o machismo?

Bom, se falamos tanto de “luta por liberdade” e contra a opressão, o mínimo que se espera de um capoeirista consciente é um comportamento alinhado com valores como igualdade de direitos.

É importante reconhecermos que a Capoeira, por ter sido um território historicamente masculino e baseado nos feitos dos “valentões” e “capadócios” naturalizou uma rejeição à valores de grupos considerados mais “delicados”, como mulheres, homossexuais ou mesmo homens que não condizem com o padrão “guerreiro” de ser.

Essa rejeição se torna clara quando até mesmo um grande ícone da capoeiragem, como Mestre Canjiquinha, afirma ao jornal “Diário de Notícias” em 1970: “Meu Deus, querem afeminar luta dos homens!”

Não se trata de desmerecer a memória do grande mestre, mas sim de colocar em perspectiva histórica nossos comportamentos coletivos.

Há muitas cantigas antigas que colocam a mulher em posição humilhante, seja comparando-a a uma galinha interesseira, seja dizendo que uma mulher ciumenta deve ser espancada.

Para criarmos uma consciência coletiva é preciso que inicialmente reconheçamos estas características históricas e que queiramos mudanças.

Aulas de mulheres são quase sempre frequentadas exclusivamente por mulheres. Por quê?

É preciso ver quantas vezes acusa-se de vitimismo mulheres que denunciam assédios.

Quantas vezes se cantam músicas que enaltecem somente a beleza da mulher e nunca sua capacidade.

Quantas vezes vemos um evento com 50% de mulheres inscritas e nenhuma dando aula.

Quantas vezes, na categoria feminina de um campeonato, quem escreve as regras são homens, quem julga são homens e quem toca na bateria são homens.

Quantas vezes homens organizam nas rodas o “momento mulher”, quando finalmente as mulheres tocam, cantam e jogam, dentro do tempo e das regras estipuladas por homens.

Quantas vezes vemos as mulheres sendo “roçadas” no samba de roda ou assediadas nas festas pós-eventos?

Quantas vezes falamos daqueles capoeiristas que conseguiram “vencer na vida” no exterior, sem falar das mulheres que muitas vezes os sustentam, casam-se com eles para que recebam vistos, organizam as associações que os legalizam e cuidam dos filhos para que eles possam trabalhar?

Precisamos olhar para nossa prática de convidar as mulheres aos eventos para elas serem referências somente para as “meninas”, e não para todos.

E podemos perguntar, ainda:

Quantas vezes vemos homens em aulas ou palestras lideradas por mulheres?

Quantas vezes vemos homens tentando jogar com mulheres de forma mais técnica, sem utilizar de força bruta?

Quantas vezes vemos mulheres cantando em um tom confortável para elas e os homens fazendo um esforço para se adequarem, tentando afinar?

E as mulheres de referência?

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As qualidades comumente exaltadas como positivas para mulheres serem referência de Capoeira são “ser guerreira”; “cair pra dentro” e “ser forte”. Basicamente, “jogar como homem”.

Algumas mulheres se encaixam neste perfil e passam a ser as referências que os homens gostam de expor, pois estão dentro de um modelo de normalidade masculina. Como são pouquíssimas as mulheres que querem ou que conseguem chegar neste modelo, as exceções são utilizadas como a regra a ser alcançada, não ameaçando o estado atual, nem apresentando alternativas. Nomes como “Maria Homem” (lendária capoeirista) ou “Chicão” (alegada assassina do famoso valentão Pedro Porreta) se transformam no modelo de “feminilidade” a ser alcançado.

Quando outras mulheres que fogem do padrão masculino destacam-se na Capoeira, seja pela inteligência, seja pelo jogo, não raro são “testadas” por homens na roda, seguindo o critério da força bruta.

Hoje em dia há inúmeras líderes femininas na Capoeira, muitas relegadas a segundo plano nos eventos, simplesmente por não corresponderem ao modelo masculino de boa performance.

 

E o que um homem deve fazer para empoderar as mulheres?

Muitos homens sentem-se na obrigação de empoderar as mulheres, mas não sabem como começar.

A boa notícia é que para combater o machismo na Capoeira, os homens não precisam se preocupar em “empoderar” as mulheres. Elas já são poderosas por conta própria.

O que os cabe é deixar de reproduzir as antigas práticas castradoras, como impedi-las de cantar porque não acertam seu tom, mantê-las em graduações baixas quando elas não se adequam aos padrões masculinos baseados na força física, taxar de “mimimi” suas reclamações e denúncias e principalmente deixar de assedia-las física, moral e sexualmente antes, durante e depois dos treinos, rodas e eventos.

Se você é mestre ou professor e quer fazer algo, pode começar por impedir estas práticas no seu ambiente. O resto, deixa que elas mesmas cuidam de fazer.

O machismo mata. O machismo na Capoeira, também

Às vezes, o machismo deixa de se restringir a práticas abusivas cotidianamente toleradas e escala para o nível do crime hediondo. Nos últimos anos, tivemos diversas denúncias criminais expostas nos jornais, desde mestre de Capoeira acusado de queimar a mulher viva, passando por mestre preso por esfaquear a companheira e por mestres acusados de estupro de meninas em idade escolar ou outro acusado de violentar  sua própria enteada.

 

 

 

Em um destes casos bizarros, após a manchete anunciar, no maior jornal do RJ:

 

Um defensor “anônimo” escreveu em um grupo de discussão:

Denunciar ou Proteger a Imagem?

Neste momento cabe novamente a pergunta: denunciar os malfeitos dos capoeiristas é queimar o filme da Capoeira? Ou queimar o filme da Capoeira é fingir que os malfeitos não acontecem?

Assim como é responsabilidade do Papa denunciar, criticar, se opor e punir os padres pedófilos, igualmente não seria responsabilidade dos mestres falar, denunciar, punir e se opor ao machismo de cada dia?

Se este for o caso, é preciso estudar o assunto, principalmente ouvindo quem tem autoridade no assunto: as mulheres.

Felizmente, hoje em dia há muitas mulheres na Capoeira. Basta escutá-las para aprender.

Temos que ter coragem de “cortar a própria carne”, tocando em assuntos difíceis e criando nossos códigos de conduta para que os “pequenos” assédios não se transformem em grandes violências.

E, por último, lembrar que o machismo na Capoeira não é você dar porrada em mulher na roda.

É você só estar concordando com este texto, porque tem um homem escrevendo.

Ferradura

PS: – Fiz uma série de vídeos no Facebook tocando no assunto. Assista aqui:

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