Quem Tem Medo Da Capoeira Gospel?

Capoeira Gospel

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Quem Tem Medo Da Capoeira Gospel?

Na última semana bombaram na net as diversas opiniões a respeito da Capoeira Gospel. Uns, defendendo a ideia de liberdade religiosa; outros, atacando veementemente o que seria uma apropriação cultural.

Há tempos a polêmica acerca deste fenômeno vem indo e vindo, com mais ou menos força. Neste outro artigo já havíamos falado brevemente sobre isso: https://capoeirariodejaneiro.com.br/pb/geral/capoeira-polemicas/

Agora, o estopim das reações apaixonadas foi este vídeo, onde supostos praticantes do “estilo gospel”, vestidos com camisas de Capoeira e tocando os instrumentos típicos fazem um sessão de culto, onde alguns deles parecem estar incorporados por uma força espiritual.

 

 

Mas o que é a Capoeira Gospel?

 

 

Historicamente, os mestres tradicionais de Capoeira eram praticantes das religiões de matriz africana. De Bimba a Pastinha, de Caiçara a Cobrinha Verde, todos os mestres estavam inseridos em um contexto onde a “mandinga” não era somente um termo relacionado ao jogo, mas principalmente um modo de se colocar no mundo, intimamente ligado ao candomblé.

Com o fortalecimento do avanço das religiões pentecostais nas comunidades populares pelo Brasil afora, a partir da década de 1980, muitos mestres de Capoeira abraçaram o evangelho, abandonado as antigas religiões de matriz africana a que pertenciam.

Alguns, como Mestre João Pequeno, seguiram conduzindo a Capoeira sem a misturar com a sua nova crença; outros abandonaram a prática, considerando-a incompatível com a postura que se espera de um cristão; um outro grupo a adaptou e reinventou a forma de se enxergar a Capoeira, conciliando a atividade religiosa com a cultural. Este último grupo é o que vem sendo genericamente chamado de “Capoeira Gospel”.

 

Quais as características da Capoeira Gospel?

 

 

Apesar de não serem um grupo coeso e de não levantarem uma bandeira única, há características próprias comuns a todos os “capoeiristas gospel”.  A rejeição aos rituais oriundos das religiões afro é a principal delas. O louvor a Jesus Cristo é outra. Em geral, a acompanham também um discurso moralista contrário à homossexualidade, às drogas e às discussões sobre gênero.

Muitos se recusam a cantar cantigas que tenham menções a “marinheiro”; “vaqueiro”, “boiadeiro” ou “pomba” por apresentarem personagens típicos da umbanda ou do candomblé de caboclo.

Alguns adaptam as músicas, colocando personagens cristãos em seu lugar; outros compõem músicas autorais em louvor à sua crença.

 

Onde encontrar um capoeira do gospel?

 

Os praticantes estão espalhados por todo o Brasil, em grupos ou “ministérios”, como muitos se denominam. Atuam fortemente nas periferias e em projetos sociais, com ênfase na evangelização.

Se reúnem em eventos próprios, com características peculiares, onde músicas em louvor a Jesus são constantemente cantadas.

Uma busca rápida no Youtube permite encontrar músicas com letras “capo-gospel” cantadas por diversos mestres, de diferentes estilos e grupos, como esta extensa playlist, com 20 sucessos da Capoeira Evangélica:

Dentre estes mestres, há desde aqueles que veem a Capoeira unicamente como ferramenta de evangelização, utilizando o berimbau para alcançar novas “ovelhas para o rebanho”, quanto outros que conciliam a prática da Capoeira evangélica com a liderança em seus grupos laicos.

Evangélicos criticam a Capoeira Gospel

 

Talvez os maiores críticos da vertente evangélica da Capoeira esteja entre os próprios pentecostais.

Grande parte dos convertidos à estas religiões são oriundos do candomblé ou da umbanda. Muitas vezes, ao trocarem de religião, são encorajados a queimar o passado para “renascer em Cristo”. Vários se tornam ferrenhos adversários dos antigos companheiros, não raro afirmando que todos estão “possuídos pelo demônio” e que necessitam “aceitar a Verdade Divina”.

Por este motivo, rejeitam veementemente a conciliação entre a Capoeira e o Evangelho. Para eles, a Capoeira é por origem uma prática satânica a serviço de espíritos do inferno. Os instrumentos, as cantigas e o gestual reforçariam esta tese.

Capoeiristas criticam a Capoeira Gospel

 

Do outro lado, há também uma rejeição por parte dos capoeiristas das vertentes “tradicionais” da Capoeira, que julgam que o uso do nome “capoeira” pelos evangélicos seria uma forma de apropriação cultural, com a perda do que acreditam ser o sentido original que historicamente organizou a forma de agir dos antigos mestres e a lógica do ritual e da liturgia das rodas.

Uma outra questão diz respeito ao que seria uma deturpação da própria natureza da Capoeira. Se a arte é fundamentalmente ligada pelas suas raízes ao candomblé, como fazer uma separação destas raízes sem derrubar a árvore toda?

O próprio nome “Angola”, como usado na “Capoeira Angola” se referiria mais à “nação Angola” do candomblé do que ao país africano.

Em suma, a retirada dos símbolos tradicionais das religiões de matriz africana e a adaptação à fé evangélica seria somente a ampliação do racismo religioso que afeta todas as manifestações de origem negra no Brasil.

No momento em que este artigo está sendo escrito, há um abaixo-assinado (clique aqui para ver) com mais de 1000 assinaturas digitais circulando na rede, onde os críticos apresentam argumentos contra a Capoeira Gospel e pedem atenção ao IPHAN para que exclua esta denominação de possíveis linhas de apoio.

Os “capoeira-gospel” rebatem as críticas

Os capoeiristas evangélicos refutam tanto as críticas dos seus pares de culto quanto as dos capoeiristas “tradicionais”. Afirmam que a Capoeira é uma atividade física não-religiosa e que o capoeirista tem o livre-arbítrio para decidir seu caminho.

Aos evangélicos contrários a adoção da Capoeira como ferramenta de evangelização, respondem dizendo que o pastor de berimbau teria o poder de chegar onde os pastores de terno não chegam, alcançando os corações de um público que não se converteria de outra forma.

Aos capoeiristas tradicionais, repetem que não demonizam os atabaques, nem discriminam os “irmãos” que professam outra fé. Reclamam justamente do inverso, pois se sentem vítimas de intolerância religiosa por não associarem a Capoeira às religiões afro.

Dizem que a Capoeira absorve diversas influências, e que a fé católica já teria penetrado na cultura da Capoeira a ponto de ser normatizado o capoeirista fazer o “sinal da santa cruz” ao pé do berimbau ou de chamar os toques de “São Bento Grande” e de cantar “Santa Maria é Mãe de Deus”.

Na visão deles, se alguns capoeiristas defumam suas academias e outros creem em santos católicos, não haveria nenhuma deturpação em inserir elementos evangélicos em suas rodas. Ressaltam que a Capoeira hoje se encontra nos países onde se professam as religiões muçulmana, judaica ou hinduísta, sem que ninguém reclame disso.

Em suma, reclamam que sofrem exatamente os ataques que se atribuem a eles.

Mas por que a Capoeira Gospel provoca medo?

 

Apesar das críticas, a quem afirme que esta é a vertente que mais cresce no Brasil, com centenas de adeptos utilizando a Capoeira Gospel como porta de entrada para alcançar novos fiéis.

Observando o processo histórico, podemos refletir sobre alguns aspectos.

Há décadas a Capoeira tem se modificado e se adaptado à diversas realidades. Originalmente uma forma de expressão afro-brasileira, foi apropriada pelo Estado Novo, compondo a ideologia do “Esporte Genuinamente Brasileiro”, ao ponto de atualmente uma academia considerada “típica” ter sempre símbolos de brasilidade, com as cores da bandeira nacional espalhadas nas indumentárias dos alunos ou pelas paredes do salão.

Muitos perguntam também se atualmente a Capoeira praticada na Europa, na Ásia ou nos Estados Unidos pode ainda ser considerada uma arte afro-brasileira.

Na esteira das adaptações, outros questionam: “Se existe “Hidro-Capoeira”, “Capo-Terapia”, “Capoeira Adaptada”, “Capo-Jitsu” e tantas outras vertentes, qual a grande questão com a “Capoeira Gospel”?

A resposta é simples

 

 

A diferença básica é que nenhuma destas vertentes ou adaptações está ligada a um projeto nacional de tomada do poder como o “gospel”. A “Capoeira-Fight” não tem o poder de ameaçar o ofício tradicional dos mestres. A “Hidro-Capoeira” não tem emissoras de TV e rádio que difundem sua ideologia. O “Capo-Jitsu” não elege governadores nem tem uma bancada no Congresso Nacional.

Por sua vez, as palavras “gospel” e “evangélica” são usadas como um grande guarda-chuva que inclui desde os “capoeiristas-gospel” até a bancada congressista da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), que conta hoje com quase 200 signatários no Congresso Nacional e que historicamente mantém posições retrógradas perante questões de raça ou gênero, tendendo a discriminar as manifestações de matriz religiosa africana.

 

A Capoeira Gospel veio para ficar

 

A grande questão é que, apesar dos protestos dos puristas, a ligação entre o Evangelho e a Capoeira é uma realidade.

Isso acontece pelo simples fato de tanto a Capoeira, quanto a religião evangélica, compartilharem os mesmos espaços populares.

A Capoeira é uma atividade popular, presente nas mais diversas comunidades, como nos morros, favelas e nos projetos sociais.

A religião evangélica ocupa estes mesmos espaços. Em comunidades onde antes todas as pessoas iam aos domingos à paróquia local, agora estas mesmas pessoas se dividem em dezenas de micro templos espalhados em garagens improvisadas.

Os poucos terreiros de umbanda e candomblé foram e vem sendo gradativamente removidos e perdendo seguidores.

Os evangélicos convertem nas ruas, nos ônibus, nas prisões e até nas cracolândias. Ocupando o vazio deixado pelo Estado, pastores fazem redes de proteção social, promovem campanhas beneficentes, organizam atividades de lazer e mediam conflitos entre os fiéis.

Os capoeiras-evangelizadores estão presentes no seio do povo. Atuam nas periferias, nas cadeias, nas comunidades populares. Passam em seu discurso mensagens contra as drogas, a favor da saúde e do esporte. Trazem para a Capoeira pessoas que antes a demonizavam.

Segundo o IBGE, em 2000, cerca de 25 milhões de brasileiro se declaravam evangélicos; em 2010, mais de 40 milhões; em 2018, já são mais e continuam em crescimento.

Ou seja, cerca de 1 em cada 4 brasileiros é evangélico e a onda não para de crescer. Obviamente, a Capoeira não irá ficar de fora dela.

O Gospel incorpora tudo que seus fiéis apreciam e faz adaptações à sua realidade. Se existe “Heavy Metal Gospel”, “Pagode Gospel”, e até “Axé Gospel”por mais contraditório que seja encontrar os termos “axé” e “gospel” lado a lado – é de se esperar que a Capoeira seja também cada vez mais influenciada e adaptada.

O perigo real

Existe uma outra dimensão na discussão da Capoeira Gospel, que se baseia no racismo religioso contra as religiões afro.

No início do século XX as autoridades enviavam a polícia para reprimir as casas de candomblé no Rio de Janeiro. Hoje em dia, facções criminosas ligadas a igrejas pentecostais fazem o mesmo, como se pode assistir no vídeo acima.

Em diversas comunidades populares do Grande Rio as casas de axé estão sendo queimadas e as mães de santo proibidas de seguir suas práticas religiosas, isso quando não são expulsas das favelas ou assassinadas. Bares não podem mais expor imagens de São Jorge, os filhos de santo são proibidos de andar de branco ou de portar guias nos pescoços e até mesmo festas juninas ou doces de Cosme e Damião são proibidos.

 

E a Capoeira com isso?

 

Como a Capoeira é tradicionalmente alvo de ataques preconceituosos, muitos cristãos a julgam “coisa do demônio”. Os capoeiristas que se declaram abertamente praticantes do candomblé ou da umbanda encontram barreiras ao tentar estabelecer pontes e diálogos com esta nova realidade.

Pode ser que, em breve, escutemos relatos de capoeiristas que se viram proibidos de praticar sua arte nas comunidades onde residem.

Qualquer um que trabalhe em comunidades populares já passou pelo problema de ter crianças cujas mães retiram seus filhos das aulas de Capoeira ou proíbem seu ingresso, baseadas nos preconceitos religiosos.

A questão é real e já atinge a Capoeira de frente.

 

Qual a solução?

Para uma situação complexa são necessárias estratégias igualmente complexas.

Os “capoeira-gospel” se ressentem dos ataques vindos tanto dos “puristas” da Capoeira, quanto dos “puristas” cristãos.

Os capoeiristas defensores das tradições afro-brasileiras, adeptos ou simpatizantes do candomblé e da umbanda, se veem ameaçados pela onda gospel.

No centro do imbróglio se encontram também as redes sociais, que mais dificultam e criam muros discursivos do que promovem diálogos e pontes entre as diferenças.

A quem uma “guerra santa” será benéfica? Qual o risco que ofereceria aos capoeiristas? Será que os pastores e os “capoeira-gospel” poderiam ser aliados para facilitar a entrada ou permanência da capoeira tradicional nas comunidades populares? Será que não é chegada a hora de pensar em estratégias de diálogo entre os diversos segmentos da Capoeira, incluindo os “capoeira-gospel”? Será que existe algum outro caminho que não seja o encontro presencial com pessoas que pensam diferentemente, mas utilizam igualmente a bandeira da Capoeira?

Será que podemos falar de cultura popular sem levar em conta o povo real?

São perguntas como essas que teremos que nos fazer nos próximos anos, pois o Brasil caminha a passos largos a uma revolução evangélica silenciosa, com base popular, e a Capoeira não ficará de fora.

Axé para quem é de axé! Amém para quem é de Amém!

 

Ferradura

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PS 2 – Após escrever este texto, fiz dois vídeos ao vivo sobre o assunto. Assista agora:

Vídeo 1:

Vídeo 2:

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